domingo, 2 de junho de 2013

Maria dos Canos Serrados - Ricardo Adolfo

Nandos é um bar original. Um bar em Mem Martins ou algures ali perto com, imagine-se, uma carreira de tiro, à imagem da que Adolfo conheceu em Amesterdão.  Aqui Maria pode disparar de rajada para aliviar o stress e não só, da mesma forma com que escreve de rajada as páginas deste quase diário.

É em jeito de cartas na primeira pessoa que mostra a sua vida. De arma em punho e peito inchado mostra como uma galdéria vulgar pode ficar destemida para enfrentar o desemprego ou o seu namorado gigolô.

Mas desenganem-se os que pensarem que as rajadas do livro se ficam pelas paredes do Nandos. Logo nas primeiras linhas: "Velhinho, Estamos fodidas. Estamos muito fodidas. Estamos fodidas como o caralho". Aviso! Estas rajadas são para manter.

A inspiração para esta história vem da falência de uma grande empresa, ocorrida em Portugal nos anos 90 mas cuja a actualidade se mantém intacta. Talvez neste aspecto resida o maior encanto da escrita de Ricardo Adolfo, a sua capacidade transmitir o que se passa no seu país. Mais ainda se atendermos que é emigrante desde 1999. Possui uma escrita vernácula, original e cheia de vivências do autor.

"Achamos curioso estarmos em greve se estamos todos despedidos. Não sabíamos que era possível estarmos no olho da rua e ao mesmo tempo protestarmos pela falta de condições de um trabalho que não existe. É que nem estamos a protestar contra os despedimentos, estamos ainda na fase das reclamações contra os salários em atraso. Se calhar esta empresa vive em fusos horários diferentes e a doutora, como sempre, já vai muito à frente, já vai no próximo ano. No último plenário, ainda confirmámos com o grande líder se não era preciso termos trabalho para podermos reclamar a falta de pagamento. Disse-nos que isso eram detalhes técnicos irrelevantes e que o que interessava eram os direitos dos trabalhadores.
mas quem não tem trabalho tem direitos sobre o trabalho que não tem?"

Maria é uma moça de má rês, um rameira com carências. Carências de amor e carinho que o amante preto não lhe pode dar. Carências de uma prometida e sempre adiada promoção no emprego que a doutora insiste em dizer que não pode dar. Carências de uma vida melhor que persiste ser difícil.

Este é um livro de sensações contraditórias. Valter Hugo Mãe diz que "a nova literatura portuguesa tem de passar obrigatoriamente por aqui". Eu reconheço valor à obra e à forma original da escrita. Mentiria se dissesse que me apaixonou.

Págs.218
Ref. ISBN: 978-989-672-157-2
Editora: Alfaguara

Sem comentários: