domingo, 12 de setembro de 2021

O elogio da sede - José Tolentino Mendonça

Algo mais espiritual, foi o que procurei ao escolher uma obra de José Tolentino de Mendonça, o padre madeirense apontado por alguns como um possível futuro papa. Não sabemos se tal poderá vir ou não a acontecer, mas é de facto alguém que pertence a uma nova vaga da Igreja, em consonância com o Papa Francisco, que tende a aproximar esta instituição à realidade dos nossos dias. Já tinha visto algumas entrevistas suas das quais gostei particularmente, porém nunca tinha lido nada seu, ainda que a vontade já existisse há algum tempo.

Por altura da Quaresma, a Cúria Romana promove a a realização de exercícios espirituais com o mote de refletir sobre a vida e o mundo, o presente e o futuro. 
O elogio da sede é uma compilação de reflexões, do ano em que estes exercícios foram dirigidos por José Tolentino Mendonça, por escolha de Sua Santidade, tendo estes textos servido de guião.

Mais do que um compendio de reflexões da Igreja sobre o mundo ou do que uma mensagem de esperança numa Igreja renovada, este livro fala-nos de sede, de uma sede espiritual que temos de combater para alimentar, pois apenas bebendo a podemos saciar e apenas saciando alimentamos a sua existência.

Este caminho é feito através da análise de algumas citações de ilustres conhecidos (Clarice Lispector, Eduardo Galeano, Cervantes, Fernando Pessoa, Santo Agostinho e muitos outros) que permitem fazer analogias com a mensagem que  Tolentino Mendonça quer transmitir.

Vivemos uma vida virada para o consumismo. Estamos sempre prontos para olhar para o nosso umbigo e satisfazer o desejo do imediato, sem que com isso nos apercebamos que é uma satisfação efémera e que normalmente leva à frustração.

Este é um livro para crentes e para não crentes, para pessoas de mente aberta. O excerto que publico a seguir resume um pouco deste livro, que teve o dom de me abanar e fazer refletir sobre como olhar para esta sede de várias perspetivas. 

"Jesus pede: «Dá-me de beber.» A sua sede não se materializa na água, porque não é de água a sua sede. É uma sede maior. É a sede de tocar as nossas sedes, de contactar com os nossos desertos, com as nossas feridas. É a sede dessa parte significativa de nós mesmos que fica tão frequentemente adiada, abandonada à solidão. É a sede dessa porção de nós (porção suspensa, omitida, calada) para a qual não encontramos interlocutor."

Págs. 166
Ref. ISBN: 978-989-722-443-0 

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O pianista de hotel - Rodrigo Guedes de Carvalho

Rodrigo Guedes de Carvalho é escritor, já tinha ouvido dizer, agora posso afirmar. Este pianista de hotel é todo ele música e que bela música!

O pianista de hotel é um livro feito de camadas que se interligam e que prendem o leitor do início ao fim. Este é para mim o ponto forte deste livro, as suas várias camadas (capítulos) genialmente estruturadas, através das quais somos transportados, terminando sempre em grande suspense. Assim, temos várias frentes em aberto, nas quais queremos estar e por isso mesmo deixamo-nos conduzir ao som desta música. Na verdade, é indiferente saber qual a camada que vai ter continuação a seguir, pois queremos segui-las sem preferência. Que é isto senão mestria!

A forma como as personagens nos são apresentadas é outro ponto forte. São pessoas comuns, como qualquer um de nós, carregadas de histórias de vida com as quais nos identificamos de uma forma ou de outra. O caminho escolhido nunca é o de uma descrição direta. Há um leve levantar do pano no decorrer dos acontecimentos, permitindo a sua apresentação. Uma curiosidade, todas as personagens são apresentadas com dois nomes Maria Luísa, Luís Gustavo, Saul Samuel, Maria Amélia, etc., etc.

Nesta música, com muitas notas rápidas e poucas pausas, são abordados temas tão comuns quanto atuais, a violência doméstica, os casos de violação, a homossexualidade, o desgaste da vida conjugal, a solidão ou a insatisfação laboral.

Em conversa na Feira do Livro, tive oportunidade de perguntar ao autor sobre aquilo que para mim se tornou claro logo nas primeiras páginas, a influência de António Lobo Antunes. Confirmou. E que bela influência! 

Sobre o pianista de hotel propriamente dito, passei algum tempo à sua espera, porém aparece quando tem de aparecer e a tempo de ser fulcral. 

“… se este mesmíssimo gajo estivesse a tocar as mesmíssimas coisas num palco com bilhetes à venda e mais não sei o quê, e promoções nas televisões e mais os críticos e mais os gajos da rádio a dizerem que ele era do catano, estes mesmos atrasados mentais que estiveram ainda agora aqui, a cagarem para ele, iam lá bater-lhe palmas e recomendavam aos amigos.”

Há tantos pianistas de hotel nesta vida….

P.S: Não há-de faltar muito tempo para voltar às letras autor.


Págs. 468
Ref. ISBN: 978-972-20-6270-1 
Editora: Publicações Dom Quixote 

domingo, 1 de agosto de 2021

A Rapariga Que Roubava Livros - Markus Zusak

Não me lembro de já ter lido um livro em que o narrador é a morte. Sim, a morte! À primeira vista pode parecer estranho, mórbido ou até talvez descabido, mas esta morte que aqui se apresenta faz um seu trabalho com uma certa doçura, se assim o posso chamar, com uma certa sensatez e serenidade.

A rapariga, a rapariga que roubava livros é Liesel Meminger. Uma criança alemã que cedo vê o irmão morrer com frio, na viagem em que a mãe os ia entregar para adoção. A família adotiva vive na Rua Himmel, nos subúrbios de Munique e desengane-se quem pensar que a adotou por ter posses, ou por poder proporcionar melhores condições de vida. Nada disso. Trata-se de uma família extremamente pobre, que vive com bastantes dificuldades. Tempos de fome, tempos de guerra.

A mãe adotiva tem um ar frio, distante e um pouco rezingona. Hans Hubermann, o pai é o oposto, é a sua tábua de salvação. Um pintor acordeonista meigo e atencioso. Foi ele que ensinou Liesel a ler o seu primeiro livro roubado.

O cenário é o da segunda guerra mundial, de uma alemanha nazi, onde os judeus são una raça a exterminar. Os bombardeamentos são constantes. A insegurança é muita. Na generalidade, as condições de vida são sofríveis, resta o sonho de que tudo passe depressa e que se possível não deixe rasto.

Max é um judeu que inesperadamente veio pedir auxilio, diga-se abrigo e esconderijo. Escondeu-se na cave dos Hubermann e foi aí que escreveu e ilustrou um livro, sobre as páginas de Mein Kampf, utilizando as tintas do pintor Hans.

Há ainda uma mulher, com outro estatuto que convidou a rapariga para conhecer a sua biblioteca, enquanto na rua, os nazis faziam fogueiras com livros que eram impróprios de serem lidos.

Numa época em que há sérios problemas de expressão, um livro pode ser uma porta aberta para o sonho, um bilhete de ida para uma viagem que permita tirar os pés do chão sem levantar voo. 

Esta é uma história de amor, uma lição de vida e um ensinamento de tempos que não podemos esquecer para que se não voltem a repetir.


Págs. 462

Ref. ISBN: 978-972-23-3907-0

Editorial Presença

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Cem Anos de Solidão - Gabriel Garcia Márquez

Tenho alguma, bastante, dificuldade em escrever sobre este livro. Depois de ter lido e gostado muito, mesmo muito de O amor nos tempos de cólera, as expectativas estavam muito altas. Mas, começando pelo fim, as minhas expectativas saíram goradas. Sei que se trata de uma das obras mais traduzidas de sempre, mas não faria sentido escrever a minha opinião se a mesma não fosse sincera.

Cem anos de solidão tem momentos muito bem desenhados, em que o refinado sentido de humor de Garcia Márquez se faz sentir. As várias gerações da família Buendía, com origem em  José Arcadio Buendía e sua esposa, Úrsula Iguarán contam aventuras e desventuras, delírios e alucinações desta família. Tudo se passa em Macondo, uma aldeia, mais tarde vila e até mesmo cidade, sem que nunca seja desvendada a sua localização exata. Adivinha-se no entanto que seja algures na América Latina, num lugar remoto, longe da civilização.

Durante cem anos vamos conhecendo os descendentes de José Arcadio Buendía e algo que todos à sua maneira têm em comum, a incapacidade de fugirem à solidão. A forma como vão morrendo é sempre inesperada, mesmo para as mentes mais férteis.

Como um jogador de futebol, conhecido por ser um astro da bola, mas que se demora a impor no clube atual, de quem os adeptos apenas vão vendo alguns rasgos de genialidade sem passar daí, assim senti este livro. Tem excertos geniais, mas por vezes é demasiado repetitivo e até mesmo enfadonho. Ainda bem que li O amor nos tempos de cólera antes, pois assim decididamente hei-de voltar ao autor.

Págs. 384
Ref. ISBN: 978-972-200-031-4 
Editora: Publicações Dom Quixote

terça-feira, 24 de julho de 2018

O menino de Cabul - Khaled Hosseini

Desta vez tudo foi diferente. Desta vez, aquele jogo de enamoramento, de que tanto gosto, entre mim e a estante de livros não aconteceu. Desta vez não fui eu que escolhi… Mas valeu a pena!
Estou em processo de mudança de casa. Quem já passou por isso sabe o que é ter todos os seus pertences divididos por caixas espalhadas por diversos sítios. No meio dessa azáfama esqueci-me de escolher o livro para levar de férias! Não resta alternativa. Vou ter de abrir uma caixa “ao calhas” e retirar o primeiro que aparecer. Apenas um requisito, tem de ser romance. Se esteve na minha estante há-de ter algo de bom.
O menino de Cabul. Lembro-me perfeitamente de comprar este livro, embora já tenha sido há algum tempo. Num daqueles passeios pela Bertrand deixei-me levar pela beleza da ilustração da capa e pelos comentários da crítica que constam na contracapa.
Este romance marca a estreia do autor. E que estreia! Não hajam dúvidas que entrou com o pé direito. Amir, o narrador desta história, é um afegão oriundo de uma família de classe alta que se viu privado da mãe à nascença, tendo sido criado pelo pai. Hassan é o seu amigo de sempre. O jovem filho do criado de quem é quase irmão.
A atenção do pai divide-se entre ambos. Amir vive com alguns preconceitos que lhe geram insegurança e outros problemas de personalidade. Hassan entende-o como ninguém, a cumplicidade é imensa, porém por vezes funciona em sentido único.
Depois de uma corrida de papagaios em que Amir conta com a ajuda de Hassan, Amir ganha, e com este feito pode finalmente cair em graças com o pai. Mas afinal, tudo não passa do dia mais negro da sua vida. Hassan é cruelmente humilhado e violado. Amir assiste a tudo, mas é impedido pela sua cobardia de intervir e tentar ajudar o amigo. Feridas que ficam abertas e que o tempo impedirá de sarar.
O fim da monarquia, as invasões russas, levaram imensas famílias a ter abandonar o Afeganistão. Amir e o pai não foram exceção. Fugiram, inicialmente para o Paquistão, posteriormente para os Estados Unidos.
Hoje, um homem feito, Amir tem uma vida estável sem grandes problemas, mas um telefonema vindo do Médio Oriente vai acabar com a monotonia do seu dia-a-dia. Há contas do passado que tem de ser terminadas…
Não tenho outra forma de o dizer. Gostei imenso deste livro! Por mais que uma vez conseguiu deixar-me os olhos molhados, tal é a intensidade com que está escrito. Que mais podemos desejar de um livro?
Gostei essencialmente do enredo intenso e envolvente, mas também da descrição da tragédia que assolou o Afeganistão, que veio de encontro ao que eu imaginava, mas sendo agora para mim ainda mais real.
Um livro bonito em que a honestidade da narrativa mostra como quase sempre, o menos é mais e como a simplicidade pode ser arrebatadora.

Págs. 336
Ref. ISBN: 972-708-861-9
Editora: Relógio d'Água

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Madrugada Suja - Miguel Sousa Tavares

Não parti para este livro à espera de um romance do tipo de Equador ou de Rio das Flores. Na verdade, nem sei ao certo do que estava à espera. Mas quem leu estas duas obras não pode esperar que de Miguel Sousa Tavares saia um romance menor.

Não é na minha opinião correto fazer uma comparação entre esta obra e as duas que a antecedem. São estilos bem diferentes. Mas com tudo isso, Madrugada Suja, é um bom livro?

Madrugada Suja é um romance atual. Em 1988, em Évora, depois de uma festa de excessos, três estudantes saem com uma miúda de 16 anos para o Cromeleque dos Almendres e tudo termina em tragédia. Filipe, um dos jovens que estava naquela noite, acaba por ser a personagem principal desta trama.

Duro como o próprio autor, sem rodeios, Madrugada Suja é uma obra que nos leva ao Alentejo profundo de Medronhais da Serra, transportando-nos por temas como a reforma agrária, sobre o nosso povo, sobre nós. O ritmo da acção é alucinante e em cada capítulo somos brindados por uma narrador diferente.

Madrugada Suja é essencialmente uma lição de vida. Um passo mal dado, uma acção menos pensada pode comprometer de forma irreversível a nossa trajectória.

Se tivesse que apontar algum ponto menos bom, diria talvez o final, um pouco prevísivel. Ainda assim, considero um bom livro e que vale a pena ler.

Págs. 351
Ref. ISBN: 978-989-724-072-0
Editora: Clube do Autor


quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Novidades Dom Quixote: Philip Roth de regresso em Setembro

O Escritor Fantasma - Philip Roth


O Escritor Fantasma é o livro que assinala, na década
de 1950, o aparecimento de Nathan Zuckerman: um
romancista promissor, fascinado pelos Grandes
Livros, que descobre os apelos contraditórios da
literatura e da experiência durante uma noite que
passa na recôndita casa de campo do seu ídolo
literário, E. I. Lonoff. Aí conhece Amy Bellette,
uma jovem fascinante, de origem estrangeira
indefinida, que descobre ter sido aluna de Lonoff, e
talvez tenha sido também sua amante. Zuckerman,
com a sua imaginação jovem e irrequieta, pergunta a
si mesmo se aquela rapariga não será a vítima
paradigmática da perseguição nazi. Se fosse, talvez
pudesse transformar-lhe a vida...

Nas livrarias em 19 de Setembro

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Dentro do Segredo - José Luis Peixoto

Dizia o anúncio que investir em viagens é a única coisa em que gastamos dinheiro e ficamos mais ricos. Se por algum momento alguém duvidar desta frase, então convido a que viaje, senão fisicamente, que seja através desta obra de José Luís Peixoto.

Sou um apaixonado confesso de viagens. Sempre que a oportunidade surge, não a desperdiço, agarro-a com as duas mãos. Também sou um apaixonado por livros, quanto a isso penso que não restam dúvidas. Agora algo que nunca me suscitou grande curiosidade foi juntar estes dois mundos. A chamada literatura de viagens nunca me fez click! Talvez porque goste de vivenciar na primeira pessoa, sem sofrer grandes influencias.

Mas então, porque decidi ler este livro?

Bom, por um lado pesou o autor, perdoem-me a expressão mas José Luís Peixoto é TOP. Sem dúvida um dos melhores autores portugueses da actualidade, dono de uma escrita muito perfumada e descomplexada pela qual me apaixonei. Por outro lado a Coreia do Norte. Gosto de ler sobre o fruto proíbido, daquele que sei que a probabilidade de vir a provar é ínfima. Não menos importante foi a opinião de quem já tinha lido o livro e que não ficou indiferente, acabando por influenciar. Quem poderia dizer que não a um cocktail com estes ingredientes?

Dentro do Segredo é o relato de uma viagem realizada pelo autor, em 2012, à Coreia do Norte, claro está, aquando da comemoração do centenário do nascimento do antigo líder Kim Il-sun. Este diário de bordo mostra o seu encanto logo no início, quando em segredo José Luís Peixoto decide comprar esta viagem e se mantém na incerteza da sua realização praticamente até ao momento da partida.

Kim Il-sung 100th birthday Ultimate Mega Tour (Ultimate Option) foi a viagem mais extensa e longa que o governo norte-coreano autorizou nos últimos anos. Repleta de histórias ímpares, revela ser a prova de que tudo aquilo que poderia imaginar sobre esta nação, sobre a vida deste povo, pode afinal ser bem pior.

Para um ocidental fazer uma viagem de 15 dias num país onde o telemóvel fica retido na fronteira, onde poucas fotografias são permitidas e onde fazer chamadas internacionais pode ser considerado um luxo extravagante, é na minha opinião por si só um acto de coragem.
Na primeira reunião, os guias incentivam a que não sejam feitas perguntas desconfortáveis. Conseguiria eu? Mesmo na Coreia do Norte? Evidente que sim, mas lá que ia custar... Como fechar os olhos a uma encenação permanente, claramente orientada para vender a este pequeno grupo a ideia de uma Coreia do Norte que, daquela forma, não existe?

Um livro fantástico que me fez despertar ainda mais para este país. Como se não bastasse diariamente ouvir Trump com as suas loucuras. 

Nota final: Este livro pode provocar uma vontade insaciável de pesquisar vídeos no youtube levando a visualizações sem fim sobre o tema.

Págs. 236
Ref. ISBN: 978-989-722-060-9
Editora: Quetzal

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Nem todas as baleias voam - Afonso Cruz

"Ainda queres ser cardiologista? Quero, disse ele. Queria consertar corações, como um dia ouvira o pai dizer. Ou, como havia sugerido Tsilia, oftalmologista, que não é uma má profissão, serve para corrigir a diferença entre o que vemos com os olhos abertos e o que vemos com os olhos fechados, e entre uma e outra coisa há uma doença inexplicável que é a realidade. Temos de acabar com isso."

Não poderia arranjar melhor forma para começar a falar sobre este livro. A escrita de Afonso Cruz é uma poesia em forma de prosa, é uma escrita perfumada que transborda harmonia.
Este é a primeira obra que leio do autor, mas é suficiente para perceber o poder da sua escrita. Um escritor de mão cheia, uma escrita cheia de conteúdo fazendo lembrar uma catedral bastante trabalhada em que cada vez que a observamos verificamos um novo detalhe.

Nem todas as baleias voam! Mas, porquê? Há algumas baleias que voam?! Esta foi a questão que me coloquei antes de avançar para este livro.

Jazz Ambassadors é o nome de um plano levado a cabo pela CIA, durante a Guerra Fria, com o objectivo de através da música cativar os jovens de Leste para a causa americana. A ideia consistia em pegar nos nomes conceituados do Jazz (Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Benny Goodman e Duke Ellington) transformado-os em embaixadores dos Estados Unidos na União Soviética. A escolha do Jazz não era inocente, normalmente associado aos negros, era a ferramenta perfeita para mostrar publicamente que nos E.U.A. não havia tensões nem diferenças raciais.

Será possível vencer uma guerra só com música?

Nunca tinha ouvido falar deste programa, mas tiro o chapéu a quem pensou nesta ideia e a quem a transformou em romance. Mas, Nem todas as baleias voam é muito mais do que o plano Jazz Ambassadors. Erik Gould é um compositor famoso àquela época, um compositor com música a brotar por cada poro da sua pele. Como se não bastasse, sofre de sinestesia, vê música em tudo e através da música consegue dizer tudo o que quiser. Vive atormentado pelo desaparecimento injustificado da sua maior fonte de inspiração, a sua mulher Natasha Zimina. Vive com o filho, Tristan, que também sofre de sinestesia, não consegue verbalizar as suas emoções, transformando-as em diversos tipos de visões.

A imaginação parece não ter fim... no entanto, o homem do chapéu cinzento recorre as pessoas que mantém fechadas numa cave, em cativeiro, para usurpar as suas ideias e com elas escrever um livro.

Nem todas as baleias voam é a celebração da arte de bem escrever. 

Quem me dera poder sofrer de sinestesia. 

Termino como comecei, com mais uma manifestação de arte:

"Dresner baixou-se, levantou um pouco a perna direita, pousou o pé lentamente e, quando tocou o chão com a sola do sapato, recolheu a perna, quase como um reflexo e com um esgar de dor.- Vês?- Não há pomadas?- Dizem que o tempo cura.- O tempo é uma pomada?- Uma espécie de pomada.- Não tem funcionado, pois não?- Não. É que também vamos criando afecto pela dor, ela diz-nos que estamos vivos, está sempre ali, presente, e essa fidelidade é importante, como se fosse um amigo.- Ou Deus.- Ou um cão."

Já agora, Se soubesses que a tua morte se aproxima, o que colocarias dentro de uma caixa de sapatos?

Págs. 276
Ref. ISBN: 978-989-9665-127-5
Editora: Companhia das Letras

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Cinco Esquinas - Mario Vargas Llosa

Lima, Peru. Vivem-se tempos de recolher obrigatório, tempos do regime ditatorial de Fujimori. Enrique Cadenas, um reputado engenheiro relacionado com a exploração de minas vê-se envolvido numa chantagem levada a cabo por Rolando Garro, diretor do tablóide sensacionalista Destapes, que ameaça trazer público uma orgia em que o engenheiro esteve envolvido.

Marisa e Chabela, a mulher do engenheiro Cadenas e a mulher do seu advogado, respectivamente, num dia em que a conversa se alongou, vêem-se impossibilitadas de regressar a casa, pelo recolher obrigatório, e acabam por dormir juntas descobrindo algo que não mais esqueceram.

De repente, há um assassinato brutal. Há um suspeito óbvio, mas será o culpado? Haverá aqui mão do regime? Como se termina este puzzle?

Esta foi a primeira obra que li de Mario Vargas Llosa e como outra coisa não seria de esperar, é evidente que estamos perante uma obra de alguém que sabe escrever, ou não fosse o autor um galardoado com o Prémio Nobel da Literatura (2010). Ainda assim, não posso esconder que se trata de um romance com um enredo muito banal, muito desprovido de conteúdo e de interesse.

Na contracapa da edição que li diz-se que é um romance sobre o amor e o erotismo. É verdade, mas na minha opinião fá-lo algumas vezes de forma despropositada e cheia de lugares-comuns. Segundo a critica esta não é uma das obras mais aclamadas do autor, pelo que lhe darei o benefício da dúvida. Tem direito a uma segunda oportunidade...

Págs. 314
Ref. ISBN: 978-989-722-288-7
Editora: Quetzal