"Ainda queres ser cardiologista? Quero, disse ele. Queria consertar corações, como um dia ouvira o pai dizer. Ou, como havia sugerido Tsilia, oftalmologista, que não é uma má profissão, serve para corrigir a diferença entre o que vemos com os olhos abertos e o que vemos com os olhos fechados, e entre uma e outra coisa há uma doença inexplicável que é a realidade. Temos de acabar com isso."
Não poderia arranjar melhor forma para começar a falar sobre este livro. A escrita de Afonso Cruz é uma poesia em forma de prosa, é uma escrita perfumada que transborda harmonia.
Este é a primeira obra que leio do autor, mas é suficiente para perceber o poder da sua escrita. Um escritor de mão cheia, uma escrita cheia de conteúdo fazendo lembrar uma catedral bastante trabalhada em que cada vez que a observamos verificamos um novo detalhe.
Nem todas as baleias voam! Mas, porquê? Há algumas baleias que voam?! Esta foi a questão que me coloquei antes de avançar para este livro.
Jazz Ambassadors é o nome de um plano levado a cabo pela CIA, durante a Guerra Fria, com o objectivo de através da música cativar os jovens de Leste para a causa americana. A ideia consistia em pegar nos nomes conceituados do Jazz (Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Benny Goodman e Duke Ellington) transformado-os em embaixadores dos Estados Unidos na União Soviética. A escolha do Jazz não era inocente, normalmente associado aos negros, era a ferramenta perfeita para mostrar publicamente que nos E.U.A. não havia tensões nem diferenças raciais.
Será possível vencer uma guerra só com música?
Nunca tinha ouvido falar deste programa, mas tiro o chapéu a quem pensou nesta ideia e a quem a transformou em romance. Mas, Nem todas as baleias voam é muito mais do que o plano Jazz Ambassadors. Erik Gould é um compositor famoso àquela época, um compositor com música a brotar por cada poro da sua pele. Como se não bastasse, sofre de sinestesia, vê música em tudo e através da música consegue dizer tudo o que quiser. Vive atormentado pelo desaparecimento injustificado da sua maior fonte de inspiração, a sua mulher Natasha Zimina. Vive com o filho, Tristan, que também sofre de sinestesia, não consegue verbalizar as suas emoções, transformando-as em diversos tipos de visões.
A imaginação parece não ter fim... no entanto, o homem do chapéu cinzento recorre as pessoas que mantém fechadas numa cave, em cativeiro, para usurpar as suas ideias e com elas escrever um livro.
Nem todas as baleias voam é a celebração da arte de bem escrever.
Quem me dera poder sofrer de sinestesia.
Termino como comecei, com mais uma manifestação de arte:
"Dresner baixou-se, levantou um pouco a perna direita, pousou o pé lentamente e, quando tocou o chão com a sola do sapato, recolheu a perna, quase como um reflexo e com um esgar de dor.- Vês?- Não há pomadas?- Dizem que o tempo cura.- O tempo é uma pomada?- Uma espécie de pomada.- Não tem funcionado, pois não?- Não. É que também vamos criando afecto pela dor, ela diz-nos que estamos vivos, está sempre ali, presente, e essa fidelidade é importante, como se fosse um amigo.- Ou Deus.- Ou um cão."
Já agora, Se soubesses que a tua morte se aproxima, o que colocarias dentro de uma caixa de sapatos?
Págs. 276
Ref. ISBN: 978-989-9665-127-5
Editora: Companhia das Letras
1 comentário:
Brilhante :)
Enviar um comentário