Recentemente, fui surpreendido por uma mini-série da Netflix intitulada Adolescência. Para além da atualidade e pertinência do tema, um dos aspetos mais notáveis foi a opção estética de filmar cada episódio em plano único, sem cortes aparentes — um exercício notável de precisão técnica e de continuidade narrativa.
Esta estratégia visual encontra um interessante paralelo em Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, romance que se desenvolve ao longo de um único dia e que, tal como na mini-série, privilegia a sensação de continuidade. Woolf constrói um “plano-sequência” literário, no qual os pensamentos, perceções e memórias das personagens fluem sem interrupções, dissolvendo as fronteiras entre presente e passado e criando uma experiência de leitura imersiva e orgânica.
Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, é assim uma obra-prima do modernismo literário, publicada em 1925, que acompanha um único dia na vida de Clarissa Dalloway, enquanto ela prepara uma recepção, para uma festa, na sua casa em Londres. Mais do que relatar eventos, o romance mergulha na corrente de consciência das personagens, explorando memórias, desejos, arrependimentos e a inevitável passagem do tempo.
A narrativa alterna fluidamente entre as perspectivas de Clarissa e outras figuras que cruzam o seu caminho, como Septimus Warren Smith, um veterano de guerra traumatizado. Esta estrutura fragmentada e a técnica do fluxo de consciência permitem a Woolf dissolver as barreiras entre passado e presente, realidade e pensamento, criando uma experiência literária quase cinematográfica, mas profundamente introspectiva.
O contraste entre Clarissa, imersa nas convenções sociais e na busca por harmonia, e Septimus, consumido pelo sofrimento e pela alienação, funciona como um comentário poderoso sobre a superficialidade das aparências e o silêncio que envolve a dor mental. Woolf expõe assim, de forma subtil mas incisiva, as limitações da sociedade inglesa do pós-Primeira Guerra Mundial, sobretudo na forma como lida com a saúde mental e o papel da mulher.
"Tenho em mim, pensou, parado ao lado do marco do correio, algo que se podia agora dissolver em lágrimas."
O estilo de Woolf, com frases longas e ritmadas, imita o fluxo natural do pensamento, exigindo do leitor atenção e entrega. Cada detalhe sensorial — o som de Big Ben, o aroma das flores, a luz que se move pela cidade — adquire um peso simbólico, ligando o efémero ao eterno. A leitura não é linear nem apressada: é uma imersão lenta e profunda no tecido da consciência. Talvez por este motivo, a determinada altura, tenha tido alguma dificuldade em manter o foco.
Mrs Dalloway mantém-se, quase um século depois, uma leitura obrigatória, tanto pelo seu valor estético como pela sua relevância social. Já tinha este livro à bastante tempo e como o prometido é devido, após a leitura de Jogos de Raiva, não dava para adiar mais. Gostei, porém não seria honesto se não dissesse que por vezes gostava de um pouco mais de ação.
Por último, e porque julgo ser mais elementar justiça, gostaria de manifestar o meu apreço pelo bom gosto das ilustrações/design gráfico desta edição. Na minha opinião, transforma este livro num dos mais bonitos que já vi.
Págs. 208
Ref. ISBN: 978-989-724-611-1
Editora: Clube do Autor